Ainda sobre os muçulmanos e uma resposta ao sr. Carlos Nougué

Carlos Alberto
6 min readFeb 10, 2021
“Ademais, esta razão geralmente é aprovada pelos sarracenos e por outros infiéis que conhecem e adoram o único Deus verdadeiro” — Francisco Suárez, S.J. (Tractatus de fide theologica, Disp. XVIII, sect. IV, p. 272).

(1) Resposta à “carta” de Douglas Bergamo.

Recentemente estive envolvido em uma polêmica com o sr. Carlos Nougué acerca da crença dos muçulmanos no Deus uno e verdadeiro. Eu, crendo estar em concordância com grandes escolásticos, sustive positivamente: que os muçulmanos, de fato, creem sob certo ângulo no mesmo “Ego sum qui sum” que nós, os católicos.

Há poucos dias, contudo, o sr. Nougué também publicou uma pequena carta de um conhecido seu (não tenho certeza se é um aluno) que busca reformular os seus argumentos, e, assim, “refutar os dois pontos falhos” de minha tese. Pois bem, vejamos se foi exitoso.

O oponente em questão levanta duas objeções:

A primeira versa sobre o fato de que, supostamente, entre o Deus dos cristãos e dos muçulmanos não falta só certa comunidade predicativa (corpo de atributos comuns predicados a Deus enquanto uno), mas também uma ausência de corpo ou comunidade nocional (identidade, como argumenta ele, de conteúdo ou de formalidades). Desta forma, embora os católicos e muçulmanos atribuam a Deus os mesmos nomes absolutos e relativos, não se segue daí, finaliza o nosso objetante, que entendam a mesma coisa mediante tais signos.

A segunda objeção toca num ponto já comentado e suficientemente respondido por mim no artigo anterior: de que ao muçulmano escapa a “crença” em Deus com fé infusa, algo jamais negado pelo que escrevi ou pelos teólogos escolásticos que citei. Sobre semelhante questão, que creio ser um tanto óbvia para quem já perscrutou os limites da “congrua cogitatio” de Vásquez e dos suaristas posteriores, não comentarei por acreditar tê-la respondido de forma considerável no artigo anterior. Tocarei, portanto, na primeira objeção.

Esta objeção que apela à falta de “identidade nocional” entre os nomes divinos é, creio eu, um grande cavalo de troia para própria teologia católica: entre os teólogos escolásticos tampouco há uma plena conformidade entre a identidade nocional de muito nomes divinos (positivos e negativos; entitativos e operativos; incomunicáveis e comunicáveis, etc.), nem por isso dizemos que estão falando de “deuses” diferentes.

Abundam os exemplos de discrepância: 1. Para Escoto (In Metaph. Aristotelis, Lib. IV, q. II), Andreas (Q. Metaphysicae, q. III) e outros célebres de seu liceu, a razão essencial da unidade divina expressa, sobretudo, um caráter positivo do que negativo ou privativo; em oposição, teólogos como Egídio Romano (Sententiarum I, Dist. XXIV, q. II), Soncinas (Q. Metaphysicales, Lib. IV, q. XXIII), o Flandrense (Metaph. Aristotelis, Lib. IV, q. III, art. VIII), Caetano (In primam partem, q. XI, art. I) e Javello (In Metaph. Aristotelis, Lib. X, q. I), assumem a razão nocional privativa desse nome.

2. Diferente do que ensinam os tomistas, para Escoto e sua escola a infinitude não é, como disse St. Tomás na Suma Teológica (Ia parte, q. VII, art. 1), um atributo negativo do ser divino, é antes um modo intrínseco de tal ser que expressa a constituição formal de sua essência. Acha-se, pois, como um modo intrínseco exclusivo do ser de Deus e primeiro princípio de onde se deduzem os demais atributos; como primeiro princípio, ademais, é formalmente distinto dos atributos restantes e é fundamentalmente o princípio de distinção entre Ele e as criaturas.

Aliás, é conveniente lembrar que acerca da polêmica do constitutivo formal da essência divina dissentem os tomistas entre si e também em relação a posição de Escoto: para alguns o constitutivo formal é a imaterialidade absoluta (opinião de Arriaga); para outros é a intelecção atual (opinião de Pedro de Godoy); para outros mais é a intelecção subsistente (opinião de Billuart e Gonet); para Capréolo, Bañez e Daelman, bem como maior parte dos tomistas dos séculos XIX e XX, é a asseidade; para Escoto e Caetano Felice é a infinitude radical.

São dissonâncias que facilmente escapam ao fôlego, mas continuemos com elas.

3. Quanto a predicação da bondade, que é uma perfeição pura e transcendental, divergem mais uma vez os escolásticos sobre sua razão formal: para Herveo (Quodlibeta, III, q. II) a bondade denota formalmente apenas certa natureza absoluta; para Durando (Sententiarum II, Dist. XXXIV, q. II) a razão formal do bem denota somente uma disposição ou relação de conveniência para com algum apetite, nunca uma natureza absoluta; para o Ferrariense (Contra Gentes, Lib. I, cap. XXXVIII), Francisco Zumel (In primam partem, q. V, art. I) e Bañez (no mesmo lugar) a bondade denota, em primeiro lugar, uma natureza absoluta, porém conota secundariamente uma relação ao apetite, que em Deus seria sua mesma vontade.

4. Sem deixar de comentar os atributos relativos, também divergem os escolásticos sobre a razão formal da divina providência: com efeito, alguns instanciaram a providência nos atos do intelecto (opinião de Gonet, Billuart, Montoya e de vários tomistas); outros preferiram instanciá-la nos atos da vontade (opinião de Escoto, Mastrio, Boyvin e de vários escotistas); outros, finalmente, a instanciaram nos atos de ambos, i. e., da vontade e do intelecto (opinião de Suárez e do pe. Joseph Dalmau).

5. Como “coup de grâce” menciono, para concluir, que Escoto dissente de St. Tomás sobre o constitutivo formal da eternidade e Suárez (Disp. Metaphysicae, Disp. L, I-III) que destoa de ambos sobre a mesma matéria. Outro belo exemplo de diversidade nocional sobre o mesmo nome divino no amplo escopo da teologia católica.

Poderia, sem dúvida, elencar mais exemplos até nausear os ânimos, mas fiquemos por aqui. Levando o que disse o objetante às últimas consequências, somos inevitavelmente conduzidos a assumir que os teólogos católicos multiplicaram os deuses ao infinito: o Deus uno de que falou Escoto e os seus discípulos não seria o mesmo Deus uno comentado por St. Tomás e pelos tomistas; assim também para os demais atributos que concorrem com alguma divergência “nocional” entre os teólogos católicos.

Felizmente a Teologia Natural pode prescindir no seu exercício dos falsos dilemas, tal como o apresentado pelo sr. Douglas: o que não percebe o objetante é que, realmente, pelo fato de haver alguma divergência “nocional” sobre algum nome divino predicado a Deus, não se segue disto que entre cada razão formal concorrente e o nome divino predicado ocorra uma total equivocidade: v. g., o que entendem os escotistas por “ser eterno” difere do que entendem os tomistas através do mesmo signo; contudo, deduzir daí que a razão nocional predicada pelo escotista concorra com absoluta equivocidade em relação à noção tal como entendida pelo tomista é simplesmente falso. Tal incidente seria impedido pelo que os escolásticos denominam de “quid nominis”, que também está ligado, num sentido mais primordial, à “ratio formalis” da noção: logo, quando um tomista e um escotista predicam a unidade para Deus é impossível que não compreendam, num sentido geral, outra coisa que não a razão de que: Ele é uno e não múltiplo.

Por maior que sejam as dissonâncias formais, elas não podem se estender até o ponto de obliterar todo “quid nominis” do termo predicado: quando um suarista julga, por exemplo, que Deus é bondoso, um adversário não pode entender, sob o mesmo contexto nominal-nocional, alfafa ou pão de queijo. Da mesma forma, poderíamos aplicar esse raciocínio ao caso da Teologia Natural árabe: quando um muçulmano julga, no contexto da teologia racional, que Deus é uno, ele não pode, por maior que sejam suas discrepâncias nocionais, entender outra coisa que “é uno e não múltiplo”. É o que permite o intercâmbio entre projetos de teologia(s) naturais e o corpo predicativo comum que mencionei no primeiro artigo.

Consequentemente, creio resguardar as prerrogativas da Teologia Natural e seu amplo escopo de opiniões convergentes e dissonantes. A objeção feita pelo sr. Douglas, creio eu, passa longe de oferecer algum perigo ao artigo que escrevi anteriormente defendendo o corpo predicativo comum entre o catolicismo e o islamismo sobre o mesmo Deus. Apelando à via apagógica, poderíamos reduzir sua objeção como um derrotador da própria teologia católica, o que reputamos como um absurdo.

Por fim, reclama o sr. Douglas de um suposto “voluntarismo” da teologia árabe, sem desconfiar, ao que parece, que também existem apreciações voluntaristas de Deus na teologia católica: não é necessário recordar que um Escoto ou um Áquila assinalam por uma tríplice via (entitativa, operativa e objetual) que a vontade, em sentido absoluto, concorre com maior primazia até mesmo nos atos divinos, correto?

(2) Resposta ao sr. Carlos Nougué.

Serei curto e direto: o sr. Nougué, à vista de uma resposta que dei em uma plataforma de perguntas, me questionou publicamente se sou mais estudado que ele ou que o pe. Calderón. Antes de tudo, gostaria de esclarecer que a pergunta feita (na plataforma de perguntas) foi claramente provocativa: supõe, obviamente, alguma contradição entre ser estudado e, por outro lado, defender o CVII. A resposta que dei foi igualmente provocativa e não implica que não existam tradicionalistas sérios (apesar de, creio eu, ainda errados) que rejeitam o Concílio.

Como não tenho o condão de esquadrinhar intelectos, não posso responder com precisão o que perguntou o sr. Nougué. Respondo, contudo, que sou tão preparado quanto e assim encerro minha breve resposta.

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