Da divina predestinação segundo Ioannes Duns Scot

Resumo da distinção XX do “Theologia Scholae Scotisticae” (tomo I), de Crescentio Krisper.

Carlos Alberto
4 min readDec 12, 2020
“Ó morte, ó morte! Eu digo: permita-me nesta ocasião somente me queixar do teu rigor! Por que você agiu tão cruelmente conosco? Assim, então você tinha que realizar isso com a escola, com a religião, com o orbe? Assim, então você deveria eclipsar o sol, apagar a luz, invejar a glória? Assim, então você tinha que tirar de nós um Escoto, o sol das escolas, a luz da Religião, a glória do mundo?”Fr. Jiménez Samaniego (em “Vida del V.P. Juan Dunsio Escoto”, p. 308).

Krisper inicia sua exposição com uma advertência: para além das controvérsias, os católicos admitem unanimemente que, na ordem da execução, a predestinação depende das boas obras ou dos méritos que delas provém; na ordem da intenção, com efeito, a predestinação para glória acontece pela “volitio efficax” (volição eficaz), por onde Deus decide ab aeternamente conferir a glória para os eleitos e separar os réprobos, antes da previsão dos méritos, em razão de sua liberdade e bondade (sentença de Escoto), ou preferivelmente após a previsão dos méritos e deméritos (sentença dos jesuítas, especialmente de Luís de Molina).

Antes de prosseguir expondo, é necessário esclarecer algumas coisas: o que devemos entender por ordem da execução e ordem da intenção? Devemos colocá-las, no pensamento de Escoto (e também no de Santo Tomás ), na dialética estabelecida entre os meios e o fim, entre um fim próximo e outro remoto. O próprio do intencional é estabelecer os fins e os meios adequados para obtenção de determinada coisa, o executivo corresponde já a realização desses meios para a obtenção do fim. Neste sentido, há uma prioridade da intenção em relação à execução: na ordem da intenção, primeiro são os fins e depois os meios; na ordem da execução, primeiro são os meios para depois alcançarmos o fim, isto é: primeiro queremos o fim e depois os meios cuja eleição nos levará a alcançá-lo (ordem da intenção), contudo, em sentido cronológico, a ordem é inversa, primeiro executamos os meios para depois obter o fim proposto.

Os escolásticos traduzem sua doutrina através do seguinte adágio: “finis est prior in intentione, sed est posterior in executione” (o fim é o primeiro na intenção, mas o último na execução). Se determinado artista deseja pintar um quadro da Monalisa, por exemplo, primeiro deverá intencionar o fim (o quadro da Monalisa), e depois os meios (ainda intencionalmente, ou seja: o pincel e a tinta), mas na ordem da execução, primeiro os meios são executados (com o pincel e a tinta) para depois se alcançar o fim, o quadro da Monalisa. Por isso, o fim é o último na ordem da execução e o primeiro na ordem da intenção e não há como desvincular o fim dos meios, nem os meios do fim.

Quando referimos estes termos à predestinação, a ordem da intenção é a ideia predestinante de Deus tal como está em seu intelecto, isto é, o seu plano de transmissão eterno das criaturas tal como existe na inteligência divina. A ordem da execução diz respeito aos meios que o mesmo Deus se valerá para obter, de fato, o fim anteposto pela ordem da intenção. À vista disso, os teólogos católicos, como destaca Krisper, são unânimes quanto a ordem da execução, que depende em parte de Deus e em parte do homem: enquanto Deus confere os meios eficazes (as graças atuais) para salvação e o homem, por sua vez, produz obras meritórias que elevam sua natureza para obtenção do fim sobrenatural (i. e., a beatitude eterna).

Os teólogos católicos, portanto, divergem precisamente na ordem da intenção: para alguns (os molinistas), Deus, em primeiro lugar, primeiro elege à graça e previsto (através da “scientia media” ou “mixta”) o bom ou mau uso da mesma, decide, assim, decretar para glória ou castigo; para outros (os bañezianos, suaristas e escotistas) Deus predestina primeiro à glória aos eleitos, e, em razão disso, a graça; ou seja, Ele gratuitamente predestina antes de prever os méritos e deméritos da criatura.

Assim, existem duas posições principais acerca da predestinação: os que defendem uma predestinação à glória “ante praevisa merita” (antes da previsão dos méritos) e os que defendem uma “post praevisa merita” (após a previsão dos méritos). Há, com toda certeza, posições que escapam desta dicotomia (é o caso da posição sintética de Francisco Zumel, que enlaça as posições de Bañez e Molina), que comentaremos noutra oportunidade. De qualquer forma, para Krisper e seus irmãos de ordem, a posição molinista é indubitavelmente falsa: como os méritos são efeitos da predestinação, argumenta ele, é impossível que a mesma se dê em razão de sua previsão, ou que os tenha como causa. Entre os autores que apoiam sua opinião, o franciscano recorre a ninguém menos que Santo Tomás (!), o colocando ao lado de Escoto:

“[…] haec videtur esse communior D. Thomae & Scoti”.

Krisper está correto, os franciscanos e dominicanos estiveram juntos nas polêmicas De auxiliis, contra os jesuítas. As posições de Bañez e dos franciscanos do século XVI são tão semelhantes que assustam, tampouco há alguma outra área em que sejam tão convergentes. Se para Domingo Bañez os decretos predeterminantes que concorrem para eleição à glória de alguns e para permissão da queda de outros (reprovação negativa); para Krisper a vontade divina elege eficazmente uns e, em razão da predestinação para graça ser um bem não-devido (Deus não está obrigado doá-la para ninguém), a predestinação por parte dos eleitos depende unicamente da “ipsa Dei dilectio” ou da divina omnipotência “ut causa motiva praedestinationis” (como causa motiva da predestinação). Por esse ângulo, assinala o célebre comentador (citando expressamente a Escoto, in Sententiarum, D. XLI, q. única), a predestinação eficaz para glória poderia ser dita como post praevisa merita na ordem da execução; na medida em que Deus prepara, através de sua omnipotência, os seus diletos os movendo e incitando, moralmente (não fisicamente, como dizem os tomistas), à vida eterna.

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