Notas de uma antropologia “caetanista”

Sobre o homem absoluto e o homem ordenado à felicidade eterna.
Em Commentaria in Primam Partem Summae, q. XII, art. I.
1. Homo absolute (homem absoluto): (1) é considerado em sua totalidade natural, i. e., em sua essência, em sua potência e apetite natural; (2) quer com seu apetite natural conhecer a Deus apenas enquanto Ele é a causa última da ordem natural; (3) não quer com seu apetite natural os bens de ordem sobrenatural (p. ex. a visão absoluta de Deus e de sua essência, a elevação pela graça, as virtudes teologais, etc.).
2. Homo ordinatus (homem ordenado): (1) é considerado apenas na medida em que está ordenado (por Deus) para felicidade sobrenatural, i. e., enquanto conhece o dado revelado e é ordenado obediencialmente para os fins sobrenaturais; (2) apetece naturalmente segundo certo aspecto a Deus (não somente como causa suprema da ordem natural, mas também como causa da ordem sobrenatural), enquanto é obediencialmente inclinado por Ele para as perfeições sobrenaturais; (3) deseja obediencialmente a visão absoluta de Deus e de sua essência, a elevação pela graça, as virtudes teologais, etc.).
Adendo: Caetano também distingue entre Deus considerado absolutamente (o que é em si mesmo) e Deus considerado relativamente (ou seja, enquanto é a causa suprema do âmbito natural).
Outros conceitos importantes da antropologia do Cardeal: os cinco estados possíveis e reais em que a natureza humana pode ser concebida.
Em Commentaria in Primam secundae Summae, q. CIX. art. II.
Estados possíveis — Potência absoluta.
1. O homem “in puris naturalibus” (estado de natureza pura): estado hipotético (i. e., termo intrínseco da própria natureza enquanto ideia exemplar/termo subjetivamente possível da potência absoluta de Deus) onde o homem não seria elevado à ordem sobrenatural, nem suplementado com os dons preternaturais, as virtudes infusas, a graça santificante e os auxílios (atuais e habituais) da graça. Neste estado, o fim último simpliciter do homem seria meramente natural e consistiria, segundo Caetano, no amor natural e no conhecimento de Deus em sentido relativo (enquanto Ele, Deus, é a causa suprema da ordem natural das coisas). O homem no estado de natureza pura, ademais, não poderia praticar ou querer o bem sobrenatural, já que suas ações não resguardam nenhuma proporção com o âmbito que sobrepassa sua natureza; não pode, portanto, nem merecer nem se dispor ativa ou negativamente para os auxílios sobrenaturais da providência especial. Poderia, contudo, praticar os bens naturais proporcionados a sua natureza, como o cumprimento relativo a substância da lei natural.
Depende transcendentalmente de Deus como motus movens (motor movido); é alvo, portanto, das moções gerais (determinadas) de Deus como Motor Imóvel da ordem natural, mas não de suas moções especiais (em ordem para elevação ao bem sobrenatural); o homem no estado de natureza pura coincide, assim, com o homo absolute de que fala Caetano. Não teria, por fim, nada adicionado nele, nem indevido, nem bom ou mau; não teria, em razão disso, nem pecado nem reato da pena ou coisa semelhante.
2. O homem “in natura integra” (estado de natureza íntegra): estado (possível/hipotético) que compreende o homem enquanto integrado com os dons preternaturais, sem supor alguma ordenação para ordem sobrenatural (pelas virtudes infusas ou pelos auxílios sobrenaturais da graça). O homem, neste estado, possuiria todo bem devido de sua natureza que e com os auxílios dos dons preternaturais, atingiria com maior integridade o termo natural de suas potências, assim como seu fim último natural simpliciter. Como no estado de natureza pura, o homem íntegro não poderia praticar ou querer o bem sobrenatural; nem poderia se dispor ativa ou negativamente para os auxílios sobrenaturais de Deus; poderia, contudo, praticar os bens de ordem e fim naturais que são proporcionais às suas faculdades. O homem in natura integra enquanto esteado ao fim puramente natural, ainda coincide com o homo absolute e, além disso, não supõe nenhum pecado ou queda original.
3. O homem “in statu gratiae” (estado de natureza elevada): estado (possível/hipotético) em que o homem seria elevado à ordem sobrenatural, com todos os elementos necessários (ou seja, os auxílios sobrenaturais, a graça santificante, as virtudes infusas, etc.) para atingir o seu termo final simpliciter , sem envolver algum dom preternatural que aperfeiçoe a espontaneidade elicita de suas faculdades. Trata-se, em razão disso, da natureza enquanto elevada unicamente ao fim sobrenatural, sem presumir algum pecado original. Coincide não com o homo absolute, mas com o homo ordinatus para felicidade sobrenatural que supõe um plus perfectivo que é conferido pelo mesmo Deus aos seus diletos.
Estados reais — Potência ordenada.
4. O homem “in statu innocentiae seu originalis iustitiae” (estado de inocência ou de justiça original da natureza): estado (possível/real) em que o homem, antes da queda, possuía todos os dons de ordem sobrenatural, como a graça santificante, os auxílios atuais de Deus e suas virtudes (teologais) infusas, assim como os dons preternaturais de integridade, impassibilidade e imortalidade, que fortificavam e aperfeiçoavam ainda mais a natureza na consecução do fim último sobrenatural (que é a visão de Deus absoluta, própria dos bem-aventurados). Neste estado, o homem além de possuir todo bem de sua natureza (perfeita consonância e equilíbrio entre suas potências em ordem ao intelecto), também possuía bens indevidos, que o ordenavam obediencialmente (pela potência neutra, como dirá Caetano) ao bem e ao fim sobrenatural, que sobrepassa a perfeição de sua natureza.
Portanto, assim como nos estados anteriores, não poderia nem querer, nem praticar o bem sobrenatural sem os auxílios dispositivos (atuais e habituais) da graça; nem se acomodar negativa ou positivamente para recebê-los. É, pois, totalmente dependente de Deus quanto a proporção (côngrua) de seus atos para ordem sobrenatural. Poderia, contudo, praticar (por sua virtude própria) os bens naturais proporcionados a sua natureza, como o cumprimento relativo a substância da lei natural.
Conhece e ama a Deus não só como causa suprema da ordem natural, mas como causa absoluta de toda ordem do ser: tanto natural como sobrenatural. Coincide, pois, com o homem ordenado de Caetano, já que está obediencialmente disposto para felicidade que escapa ao homo absolute.
5. O homem “in statu naturae lapsae” (estado de natureza caída): estado em que o homem, após o primeiro pecado, foi destituído de toda graça e dos restantes dons sobrenaturais e preternaturais. É, portanto, uma natureza ferida que importa uma condição pior que o homem in puris naturalibus, porque compreende uma virtude menor para realização do bem moral do que teria por comparação com o estado puro de natureza, ainda que seus princípios constitutivos permaneçam intrinsecamente íntegros, isto é, não diminuídos no sentido físico ou “quod entitatem”, sua virtude é afetada extrínseca e moralmente. O estado decadente da natureza, portanto, compreende uma condição “pior” pela “vulnerata in naturalibus” e pelo desaparecimento da ordem perfeita das faculdades ao seu bem próprio (pela destituição do que os tomistas chamam de “lei da harmonia”).
À vista disso, no homem caído há mais (e maiores) impedimentos extrínsecos que no homem puro. Convém aqui apontar pelo menos três deles.
“Ex parte finis”: o homem puro integra, ao menos em sentido simples, uma simpatia/conversão (moral) em relação ao fim natural (que lhe seria proporcional), na medida em que sua natureza abarca uma continência harmônica (embora não totalmente perfeita) entre o corpo e a alma; entre as faculdades inferiores e superiores; entre as faculdades “secundum se” e seus respectivos termos motivos e terminativos (que são concomitantes); o homem caído, em contrário, está em absoluta aversão ao fim sobrenatural, e por conta da conexão entre a ordem natural e sobrenatural, não pode permanecer devidamente na ordem natural (porque necessita justamente da “gratia sanans”).
“Ex parte concupiscentiae”: embora o homem puro seja congenitamente capaz da inadequação da concupiscência, ele, contudo, não está inclinado para volúpia desenfreada, como no presente atestamos no homem caído, que não se diz propriamente natural, mas algo contra a natureza.
“Ex tyrannide diaboli”: que agora é evidente, não conviria verdadeiramente no estado de natureza pura, ao menos não no mesmo grau.
O homem caído não pode praticar ou querer (por suas mesmas forças) o bem sobrenatural, já que suas operações débeis não resguardam, como acontece nos estados anteriores, nenhuma proporção com o âmbito que sobrepassa sua natureza; não pode, portanto, nem merecer nem se dispor para os auxílios da graça, nem ser causa dos mesmos; tampouco pode ser causa de sua predestinação ou dileção por parte de Deus. Diferente dos outros estados, porém, o homem caído necessita dos auxílios não apenas para praticar e querer o bem sobrenatural (meritório), mas também para se fortificar e sanar suas feridas. Daí que os escolásticos do século XIX adicionem também outros dois estados de natureza (que, neste caso, supõe a redenção de Cristo): o homem em estado de natureza reparada e glorificada.
Outro adendo: para Caetano há uma superposição de fins; o fim sobrenatural sobre o natural; o bem sobrenatural sobre o bem natural; o homem ordenado sobre o homem absoluto. A superposição, entretanto, não supõe divisão ou separação entre natureza e graça; ambos permanecem unidos como perfeicionante e perfeicionado e como causas unitivas que residem no âmago da alma humana. O que não quer dizer, porém, que não exista entre ambos alguma distinção “in actu”, e, assim, real-física própria da separação do que pode atingir o termo natural das potências da criatura e o que ele não pode.
Para Caetano, finalmente, são importantes as noções de potência neutra e potência natural.
Em De Potentia Neutra, q. II.
1. Potência neutra: segundo Caetano, é uma faculdade que está em oposição a “potentia naturaliter inclinata”, já que se diz carente de inclinação ativa ou passiva em relação ao ato e é puramente indiferente acerca de sua realização e termo.
2. Potência natural: é a faculdade que, em contrário, tende acidentalmente para realização de seu termo natural e apetece ser satisfeita.
Adendo final: a potência neutra compete ao âmbito sobrenatural, da potência obediencial/indeterminada que toda criatura compreende à vista do poder ativo (infinito) de Deus. A potência natural, por sua vez, é completamente “cega” acerca das perfeições sobrenaturais e seu elicitar não excede jamais a natureza das coisas.
Por Carlos Alberto.