Pontualização sobre a lógica escolástica e o psicologismo
Prolegômenos ao problema.
Conforme os tomistas o objeto formal da lógica são os entes de razão ou segundas intenções do intelecto; para Aureolo e os nominalistas, são as vozes significativas; para Rúbio, Suárez e Masio, são as três operações mentais enquanto dirigidas pelo hábito artificial, etc.; os escolásticos, ademais, convém uniformemente na afirmação de que o objeto material da lógica são as três operações do intelecto, a saber: a simples apreensão, o juízo e o raciocínio.
Na canteira tomista, segundo o João de S. Tomás (Ars logica, segunda parte, q. II, art. II), a intenção formal é o mesmo conhecimento ou ato pelo qual o intelecto é intencionalmente orientado para o objeto; e os objetos daqueles atos são chamados de “intenções objetivas”, uma vez que a intenção objetiva é o próprio objeto em relação ao qual o intelecto tende a seu ato. Assim, pois, a intenção intelectual é dupla: formal e objetiva. No que lhe concerne, cada uma delas é dividida em primeira e segunda intenção. Pois o intelecto pode lidar com as coisas de duas maneiras: se as conhece no que compreendem realmente secundum se, como quando conhece que o homem é animal ou que o cavalo é corredor, então o ato mesmo cognoscitivo se chama primeira intenção formal; mas a coisa mesma conhecida toma o nome de primeira intenção objetiva: tal é somente o objeto que cria o termo do primeiro conhecimento que o capta, i. e., o termo da primeira intenção formal. Porém, se o intelecto conhece as coisas, não pelas propriedades que lhe convém na realidade, mas pelas que tem devido a operação do intelecto mesmo, como quando conhece que o animal é gênero ou que o homem é espécie, então o mesmo ato cognitivo se chama segunda intenção formal; enquanto que, a coisa conhecida, segundo o seu ser que possui devido ao intelecto, toma o nome de segunda intenção objetiva; tal é, agora, o objeto segundo as propriedades que mostra enquanto conhecido e na medida em que perfaz sua razão como termo de uma segunda intenção formal.
O ente de razão, por sua vez, é o ente que possui um ser não mais que objetivo no intelecto. Por conta disso, o ente de razão ou envolve fundamento nenhum por parte das coisas, como quando concebemos um centauro ou uma quimera, ou possui um fundamento remoto nelas, como nos conceitos de espécie e gênero. O ente de razão com fundamentum in re se divide, ademais, em negação, privação e relação. Negação é a carência de forma em um sujeito incapaz de tê-la, como a carência de vista em uma pedra. Privação é a carência da forma em um sujeito apto para tê-la, como a carência da vista no homem (a cegueira). A relação, por fim, é uma disposição ou ordem apreendida pelo intelecto entre coisas que não estão realmente relacionadas, como quando o intelecto concebe a Deus como relacionado com os seres criados.
Husserl e os escolásticos: psicologismo, para que te quero?
“As leis da lógica não são leis psicológicas da asserção sobre a verdade, mas leis do mesmo ser-verdade” — Gottlob Frege (em Grundgesetze der Arithmetik, Pref., S. XVI).
O psicologismo, de modo geral, é o uso sistemático da psicologia iniciado no século XIX por Dilthey, como fundamento das chamadas Ciências do espírito que estão, assim, compreendidas na Filosofia, ou seja: aquelas disciplinas contrapostas às Ciências da natureza. Neste sentido, se questionavam os filósofos daquela época se as leis do pensamento abarcavam um valor empírico/contingente ou se, de fato, envolviam alguma validez supre empírica e necessária; esta polêmica ressuscitou o debate acerca da primazia da lógica sobre a psicologia e vice-versa. Os escolásticos, por seu lado, também não se acovardaram perante tal desafio.
John Stuarth Mill, em seu System of Logic, estabelece uma das grandes defesas do psicologismo, ao considerar a lógica como um dos capítulos da psicologia enquanto é, segundo ele, um processo mental efetuado quando raciocinamos indicando as condições que depende dito processo. Contra semelhante atitude reagiram prontamente vários neokantianos, como Windelband, H. Cohen, Natorp e outros dignos de nota, que ressaltaram o âmbito normativo da lógica frente os dados empíricos que, em sua constituição formal, não são intercambiáveis diretos. Os ataques mais incisivos à postura psicologista, porém, surgiriam apenas no início do século XX, com Edmund Husserl e suas notáveis Logische Untersuchungen. Suas investigações lógicas levaram ao sepultamento do psicologismo pela defesa do estatuto das leis lógicas como conteúdos supra-noemáticos e supra-vivenciais, que não podem ser atingidos pela mera análise dos conteúdos psicológicos.
Resta-nos, finalmente, responder o seguinte: incorrem os lógicos escolásticos em alguma espécie de psicologismo? Acerca desta pergunta serenamente respondemos: enquanto assumem que o objeto da lógica não pode ser um ente real psicológico ou determinado modo de conhecimento, não. A postura anti-psicologista dos escolásticos é surpreendente; enquanto assumem um objeto formal na Lógica essencialmente distinto do objeto formal da Psicologia, se separam, assim, dos psicologistas “y sus suaces”; da mesma forma que estabelecem uma distinção entre propriedades lógicas e reais, enquanto que as primeiras são intercambiáveis dos entes de razão e as segundas dos entes reais.
Escapam, desta forma, os escolásticos ao instanciarem o artefato lógico no âmbito dos entes de razão e das segundas intenções (Santo Tomás, Caetano e João de S. Tomás); no silogismo enquanto oratio que dispõe preceptivamente os termos (Escoto, Sannig, Mastrio e Trombetta); nas operações mentais enquanto dirigidas pelo hábito artificial (Suárez e Rúbio). Surpreendente é, igualmente, perceber que João de S. Tomás ainda no século XVII reforçava o papel da lógica como normativa, ao citar uma lógica dos preceitos (lógica preceptiva) na Arte da lógica.