Utilidade e necessidade da lógica artificial em Gabriel Boyvin (†1681) e Bernardo Sannig (†1704)

Carlos Alberto
7 min readMay 5, 2021
“Podemos dizer que a Lógica possui imprópria e extrinsecamente certa unidade genérica e específica. A conclusão é sacada de Escoto, que no mesmo lugar constata a mesma coisa das outras ciências que, enquanto tais, possuem alguma paridade com a Lógica.” — Bernardo Sannig, O.F.M. (em Schola philosophica Scotistarum, Tractatus primus, dos proêmios da Lógica escotista, dist. única).

Para entender o significado da pergunta que se refere à lógica artificial, é preciso saber que o que é necessário para um fim pode ser duplo: simpliciter (absolutamente) e secundum quid (segundo certo aspecto). É simpliciter necessário aquilo sem o qual o fim não pode ser obtido ou, como argumenta Goudin (ver Philosophia Thomistica, vol. I, Logic. proemium, Disp. I, q. V), aquilo sem o qual a coisa não pode ser: os olhos são necessários para ver, a graça para se salvar, etc; e necessário secundum quid aquilo sem o qual o fim pode ainda ser obtido, mas com ele é alcançado melhor e mais facilmente ou aquilo sem o qual a coisa pode ser, mas com dificuldade: um cavalo é necessário para uma longa jornada, um manto e uma casa são necessários para a vida e os óculos são necessários para ver quando se envelhece, etc.

Segundo Bernardo Sannig, a necessidade poderá ser ainda física ou moral: será moral aquilo sem o qual uma causa não pode senão com muita dificuldade produzir seu efeito; como um cavalo que é necessário para viajar no caso de um homem manco; será física quando a inclinação da coisa não possui o condão de operar diferentemente de como opera, i. e., sem poder eleger; é, pois, segundo o mestre franciscano, o princípio físico total ou parcial que concorre para o fim ou a coisa requerida para atingi-lo; ou será a condição aplicativa de tal princípio como é, v. g., a virtude calefativa e a aplicação de sua virtude para produção do calor.

Ademais, para o bom discernimento da questão, é essencial notar que a ciência pode ser considerada no estado perfeito ou no estado imperfeito (ver Cursus Philosophicus Thomisticus, Log. II, q. I, art. I): a ciência no estado perfeito é o pleno conhecimento das conclusões relativas a um objeto, para que possam ser reduzidas a princípios conhecidos por elas mesmas e defendidas contra aqueles que as atacam. A ciência no estado imperfeito é o conhecimento adquirido por uma demonstração simples, mas insuficiente para penetrar no lado difícil da questão e apoiar solidamente as demonstrações em que se baseia.

Dito isto, existem três opiniões sobre a necessidade da lógica artificial, duas extremas e uma intermediária. Segundo alguns, a lógica é útil, mas não necessária para adquirir as ciências perfeitamente; os outros querem que seja absolutamente necessária para adquirir as ciências, mesmo no estado imperfeito; finalmente, a terceira opinião, que serve como intermediária, é que a lógica é absolutamente necessária para adquirir as ciências no estado perfeito, mas não para adquiri-las no estado imperfeito. A primeira opinião é defendida pelos Conimbricenses (em In universam dialecticam Aristotelis, q. VI proem., art. II), por Fonseca (em Commentariorum in Metaphysicorum, Lib. II, cap. II, q. IV), Arriaga (em Logicae, Disp. II, sect. II) e Bartolomeu Mastrio (em Institutiones logicae, I, q. proem, art. VI); a segunda opinião aparece em Domingo de Soto (em In Dialecticam Aristotelis commentaria, q. I, proem., c. II), no Cardeal Aguirre (em Selectae disputationes in logicam et metaphysicam Aristotelis, Logic., Tract I, disp. II, sect. I e II), em Crisóstomo Javelli (em Logicae compendium peripateticae, tract. I, cap. II), em Bartolomeu Amico (em Logicae, tract. I, q. II, art. III) e, por fim, em Cosme Alamanno (em Summa totius philosophiae, prima pars, q. I, art. IV); a terceira opinião é defendida pelos Complutenses (em In Universam Aristotelis logicam, disp. I proem., art. VII), por João de S. Tomás (em Cursus Philosophicus Thomisticus, Log. II, q. I, art. I), por João Ponce (em Integer philosophiae cursus, disp. II, quaest. ultim.), André Semery (em Triennium philosophicum, Logic., disp. proem., q. I, art. I), João Ulloa (em Dialectica seu logica minor, disp. III, cap. III, n. 75) e Antônio Rúbio (em in Universam Aristotelis Logicam, q. I proem.).

Não há opinião unânime entre os escotistas, nem sequer entre os seguidores de Santo Tomás. Para nós, contudo, importa saber a opinião de Bernardo Sannig e Boyvin acerca desta questão. Vejamos:

I) Posição de Gabriel Boyvin (em Philosophia Scoti, prima pars, q. VIII, p. 74):

Constato, em primeiro lugar, que a lógica natural é absolutamente necessária para aquisição de toda ciência, porque em si mesma não é senão o mesmo intelecto nosso, enquanto possui certa aptidão para o raciocínio; mas sem a capacidade de raciocínio não somos capazes de adquirir ciência; logo, a questão que abordaremos não deve versar sobre a lógica natural, mas apenas sobre a lógica artificial.

Constato, em segundo lugar, que a lógica artificial não é necessária para aquisição, exercício ou conservação da fé; pois, visto que a fé é sobrenaturalmente infusa, exerce por isso uma moção sobrenatural para preservar a veracidade de Deus e, consequentemente, conservar crendo com humildade, sem perscrutar curiosamente (nota do tradutor: a curiosidade segundo os escolásticos é um hábito operativo mal) os mistérios da fé: por essa razão, a lógica artificial não é requerida para comparação, exercício ou conservação da fé; no entanto, se alguém quiser nos persuadir para defesa da fé e das suas verdades, a lógica é útil, para revelar a razoabilidade e resolver as objeções em contrário.

Constato, em terceiro lugar, que a lógica artificial é necessária para instituição da Teologia Escolástica, porque as disputas de ordem filosófica sobre suas verdades requerem necessariamente definições, divisões e argumentações, que a lógica confere. Na teologia positiva, que consiste em explicar totalmente as dificuldades das Escrituras, não é absolutamente necessária a lógica artificial; é, contudo, muitíssimo útil, especialmente para explicar as as dificuldades que ela contém.

E termina:

“[…] A lógica é absolutamente necessária para aquisição das ciências em estado perfeito. Como Aristóteles dizia dos antigos filósofos, que incorriam frequentemente em erro devido a imperícia em lógica.

II) Posição de Bernardo Sannig (em Schola philosophica Scotistarum, Tract. I, proem. Logic., dist. unic., q. VI, p. 91–93):

Digo primeiro: a lógica artificial é de insigne utilidade e benefício oferecido para os homens estudiosos. O que é sentença comum dos filósofos católicos e dos Santos Padres, de Platão e de Aristóteles; o que sustentamos contra Epicuro e seus asseclas; contra os cirenaicos, seguidores de Aristipo de Cirene; e também contra grande parte dos heréticos que, surpreendentemente, se valem da lógica de forma astuciosa e irresponsável, para benefício próprio e dos sofismas que expõem.

Digo segundo: a lógica artificial não é simpliciter e fisicamente necessária para instituição das ciências; como diz Escoto em II Metafísica, XII, e comumente os escotistas contra Egídio, Álvares e Boécio.

Digo terceiro: a lógica ainda artificial é secundum quid e moralmente necessária para aquisição das ciências; o que, naturalmente, é alcançá-las em estado perfeito. Tal sentença é acolhida por Escoto, em q. I, univers., e é habitualmente acatada por sua escola.

A divergência entre ambos os comentadores é manifesta: o primeiro está mais próximo da terceira posição, que é essencialmente intermédia; o segundo, por seu lado, se aproxima da primeira posição, que está na extremidade. Para evitar o favorecimento de uma ou de outra posição, exporei agora os argumentos de cada um em seus respectivos tratados.

III) Razões para posição de Sannig:

Primeiro argumento: toda verdade de qualquer ciência é demonstrável pelos quatro modos da primeira figura; assim, para demonstrar com estes quatro modos não é simpliciter necessário a lógica artificial, já que nestes modos a bondade da consequência aparece sem mais e naturalmente, como é um fato; ergo, qualquer verdade de qualquer ciência pode ser demonstrada sem a lógica, e, portanto, o intelecto pode ter notícia de muitas e ainda de todas as conclusões de uma ciência sem a lógica artificial.

Segundo argumento: quem conhece certa e evidentemente, sem a lógica, que as premissas são verdadeiras conhece, sem ela também, que os extremos se identificam com o termo médio, já que em tal identidade consiste justamente a verdade das premissas; assim, quem conhece que os extremos se identificam com o meio conhece, por consequência, que se identificam entre si; já que o princípio: coisas idênticas a uma terceira são idênticas entre si é conhecido pela luz natural do intelecto. Ergo, quem conhece certa e evidentemente, sem a lógica artificial, que as premissas são verdadeiras, conhecerá que os extremos identificados com o meio se identificam também entre si.

IV) Razão para posição de Boyvin:

Argumento único: para adquirir perfeitamente as ciências, é absolutamente necessário discorrer com perfeição: agora, a mente humana, sem esse conhecimento exato da natureza e dos princípios do discurso que constitui a Lógica artificial, não pode discorrer perfeitamente, portanto, não pode ter uma ciência perfeita sem a lógica. A maior é evidente pelos termos: quanto a menor, somos persuadidos a considerar a imperfeição do espírito humano e a refletir sobre o fato de que aqueles que querem falar perfeitamente devem saber que suas manifestações estão sujeitas a regras e se baseiam no princípios certos e óbvios de uma boa discussão; ele deve, portanto, conhecer essas regras e princípios.

Confirmação da menor: quem não sabe perfeitamente o que sabe, não sabe perfeitamente; agora, sem a lógica, não sabemos perfeitamente o que sabemos: portanto, não sabemos perfeitamente. Confirmação da menor: a lógica é a ciência do discurso perfeito; portanto, sem ela, não se sabe perfeitamente o que se sabe. Ergo, etc.

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